Em 23.03.2020, o Governo Federal publicou a Medida Provisória n° 927, que prevê novas regras nas relações de trabalho durante o período de calamidade pública por conta do avanço do novo corona vírus no país, que foi decretado para até 31 de dezembro deste ano.
A referida medida trouxe muita polêmica e grande repercussão midiática, principalmente por conta do malsinado artigo 18, que tratava da possibilidade de suspensão dos contratos de trabalho – sem percepção de salário – por até quatro meses, sem a necessidade de acordo ou convenção coletiva, podendo ser convencionado de forma individual.
Não por acaso o referido artigo foi revogado pelo Sr Presidente da República no mesmo dia da entrada em vigor da norma, contudo, não pôs fim às discussões entre os operadores do Direito.
Nos termos do art. 2° da referida MP, os acordos individuais de trabalho prevalecerão sobre instrumentos normativos, legais e negociais, “respeitados os limites estabelecidos na Constituição”. Eis aí o ponto nodal da questão: sob o ponto de vista constitucional será possível dispor sobre certos direitos trabalhista via acordo individual de trabalho, sem a interferência dos sindicatos?
Não se pode negar o momento de excepcionalidade que a sociedade está passando por conta do avanço do coronavírus, e que certos ajustes são necessários com o fito de preservação dos contratos de trabalho. E foi exatamente nesse contexto que a medida provisória em espeque regulou determinadas relações trabalhistas como regime de teletrabalho, banco de horas, férias individuais e coletivas. Ainda nesse diapasão, não descarta-se a hipótese de outras normas disporem novamente sobre a suspensão do contrato de trabalho ou ainda a possibilidade de redução de salários, hipótese que também foi ventilada pelo Governo Federal.
Fato é que a Medida Provisória n° 927/2020 (e outras que por ventura surgirem durante o período de calamidade pública) deverá ser interpretada sistematicamente com os preceitos constitucionais, principalmente com os direitos trabalhistas que só poderão ser negociados por acordos e convenções coletivas, visando proteger a parte mais vulnerável da relação, que é o trabalhador.
É o caso do art. 7°, (i) incisos VI, que assegura a irredutibilidade do salário, salvo acordo ou convenção coletiva, (ii) inciso XIII, que limita a jornada de trabalho em até 8 horas diárias, facultada a “compensação de horários em acordo ou convenção coletiva”, e (iii) inciso XXVI, que trata do reconhecimento das convenções e acordos coletivos. No mesmo sentido é o disposto no art. 8°, inciso VI, que dispõe ser obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho.
A constitucionalidade da preponderância dos acordos individuais tratada na MP é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI n° 6342 proposta pelo PDT perante o Supremo Tribunal Federal, tendo como relator o Ministro Marco Aurélio. Em recentíssima decisão proferida em 30.03.2020, o Relator indeferiu a liminar requerida, mantendo-se os efeitos da medida provisória até ulterior julgamento pelo Plenário da Corte[1]. Dentre diversos fundamentos, o Ministro Marco Aurélio defendeu a liberdade do empregado para celebrar acordo individual para preservar seu próprio sustento no momento de crise que estamos passando.
Não obstante a notícia acima, s. m. j., a aplicação das novas regras inseridas pela Medida Provisória n° 927 no tocante ao conteúdo dos acordos individuais de trabalho deverá ocorrer de forma cautelosa, devendo o empregador – sempre que possível – optar pela negociação coletiva, mesmo sabendo que a convocação dos sindicatos em tempos de pandemia torna o trâmite mais moroso.
Sob outro ângulo, mas não menos importante, sabe-se que a referida medida provisória irá seguir seu trâmite legislativo, sendo remetida ao Congresso Nacional para aprovação e conversão em lei, ou se for o caso, caberá ao decreto legislativo disciplinar os efeitos jurídicos gerados durante sua vigência.
Portanto, a Medida Provisória n° 927 foi o primeiro passo adotado pelo Governo para assegurar a preservação do emprego e da renda, através de medidas de flexibilização de determinadas regras e direitos trabalhistas que se justificam ante a necessidade da sociedade se adequar ao momento excepcional de calamidade pública e economia fragilizada. Contudo, mesmo calcada na hipótese de força maior (CLT, art. 503), admitindo-se regras excepcionais, a referida norma deverá respeitar as garantias constitucionais e trazer mais segurança jurídica para as partes.
Raquel Ribeiro, advogada, sócia do escritório Drubi, Ribeiro & Oliveira Advogados Associados.
[1] Além da ADI n° 6.342, vide ADI n° 6.344, proposta pelo Rede Sustentabilidade, e ADI n° 6.348, ambas sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio.